Como cometer um crime no Brasil em 1 passo? Envelheça
ALERTA: Envelhecer é contraindicado. Pode causar exclusão, rejeição e sumiço social. Se surgirem sinais de tempo, recomenda-se desaparecer
Se envelhecer, no Brasil, já é sinônimo de atravessar a vida como um corpo fora do enquadramento, envelhecer sendo LGBTQIA+ é existir na interseção do apagamento social com o descarte programado. O tema da Parada LGBTQIA+ de São Paulo deste ano não veio como agrado, nem como celebração nostálgica. Foi um soco. Um alerta. Uma provocação que muitos fingem não ouvir. Porque, sejamos honestos, ser velho é praticamente um crime social. E ser velho e LGBTQIA+ é uma sentença dupla de invisibilidade.
Vivemos no país que performa diversidade quando ela é vendável, capitalizável, instagramável e, sobretudo, jovem. Onde a representatividade tem limite de idade, de colágeno, de viço e de conveniência estética. Uma sociedade que fala de inclusão, mas que se desfaz de quem não cabe mais no molde. E o molde, todos sabemos, é estreito, liso, depilado e rejuvenescido até a última célula.
A ironia é que essa minoria que hoje tenta ser silenciada está prestes a se tornar a maioria estatística. Segundo o IBGE, mais de 32 milhões de brasileiros têm mais de 60 anos. Isso significa que um em cada cinco habitantes do país já vive essa realidade que a maioria insiste em fingir que não existe. E até 2030, teremos mais idosos do que crianças e adolescentes. O país está envelhecendo, os corpos estão envelhecendo, mas o mercado, as mídias, as redes sociais e até os próprios discursos progressistas seguem operando no delírio coletivo da juventude eterna.
Não há espaço para a velhice. Não há espaço na publicidade, que só enxerga cabelos brancos quando eles vêm acompanhados de pele sem flacidez e sorriso de comercial de plano de saúde. Não há espaço nas empresas, onde RHs descartam qualquer currículo que tenha mais de cinco décadas de vida. Não há espaço na cultura, que transforma corpos maduros em paisagem borrada, caricatura ou piada de mau gosto. E, definitivamente, não há espaço nos algoritmos, que silenciam, somem, apagam quem não performa o corpo desejável, o lifestyle produtivo e a jovialidade rentável.
Os liftings faciais já estão aí, discretos, quase imperceptíveis — pelo menos é essa a promessa vendida. Mas basta um olhar atento para perceber. Compare o rosto de Kris Jenner há cinco anos e agora. Envelhecer, no imaginário contemporâneo, não é mais permitido. Não é mais sinônimo de sabedoria, de maturidade, de experiência acumulada. É, simplesmente, um erro a ser corrigido.
Se antes os sinais do tempo eram carregados com certa dignidade — a tal “maturidade boa”, que vinha com a autoridade de quem viveu —, hoje eles são combatidos como se fossem uma praga. Camuflados. Suprimidos. Corrigidos a qualquer custo. Literalmente qualquer custo. O preço é alto, não só no que se paga em procedimentos, mas no que se paga socialmente por ousar parecer velho.
A lógica é cruel: o rosto não pode mais contar história. Ele precisa performar uma juventude eterna, plastificada, harmônica, palatável, que engane o olhar do outro e, mais ainda, que engane o algoritmo — esse juiz silencioso que define quem aparece, quem some, quem engaja, quem é descartado. O etarismo, nesse contexto, não é só estrutural. É estético, é mercadológico, é algoritmo, é indústria, é máquina de moer rosto, carne, desejo e subjetividade.
O resultado é esse: uma sociedade onde todo mundo corre contra o tempo, não para viver mais, mas para parecer que o tempo não passou. Porque, na lógica atual, parecer velho não é só desconfortável — é uma falha moral.
E, claro, se envelhecer já é um ato subversivo nesse sistema que só valoriza quem performa juventude, para as mulheres — como sempre — isso é ainda mais cruel. Porque se a velhice é tratada como defeito para todo mundo, para elas é praticamente uma infração estética, um crime visual, um erro social que precisa ser consertado, apagado, disfarçado, camuflado. E se esse corpo é lésbico, bissexual, queer, ele é duplamente condenado — pela misoginia de base e pela homofobia estrutural.
Não é de hoje que o tempo age diferente sobre os corpos femininos. O que nele deveria ser entendido como acúmulo de história, bagagem, desejo e potência, passa a ser lido como desgaste, como sinal de obsolescência, como alerta de que aquele corpo já não serve, não presta, não interessa. Porque, no fim das contas, o que a sociedade espera das mulheres — cis, trans, hétero, lésbicas — é que elas sejam jovens, desejáveis, produtivas, discretas e, preferencialmente, perecíveis.
É quase patético observar como o mercado opera quando o assunto é mulher e envelhecimento. Homens grisalhos ganham a alcunha de charmosos. Mulheres grisalhas são empurradas pra prateleira do “desleixo”, da “falta de cuidado”, da “decadência”. E não se trata só de estética — se trata de valor social, de relevância, de permanência.
Enquanto isso, o que sobra pra elas? Os mesmos comandos de sempre: se preserve, se harmonize, se ajeite, se recicle, se apague. O rosto, o corpo, a presença. Porque envelhecer, para uma mulher, nunca foi só sobre acumular tempo — foi, desde sempre, sobre perder valor de mercado. E, cá entre nós, isso não é metáfora. É o sistema funcionando exatamente como foi programado.
Basta olhar pro cenário brasileiro. Quantas mulheres lésbicas, sapatonas ou bissexuais famosas você consegue citar que estejam acima dos 50 e que sejam tratadas como ícones fora da caricatura? Poucas. Mas elas existem. Cássia Eller, mesmo partindo jovem, deixou uma marca incontornável. Uma mulher que, nos anos 90, se recusou a performar feminilidade normativa e que, até hoje, permanece como símbolo de liberdade. Sandra de Sá, que nunca se escondeu e carrega sua identidade negra, lésbica e periférica como parte inegociável de quem é. Mart’nália, que segue construindo sua carreira longe dos moldes impostos, vivendo seus afetos e sua música do jeito que quiser. E claro, Fernanda Gentil, que, ainda que jovem dentro desse recorte etário, precisou enfrentar todo o circo midiático que sua saída do armário gerou — o que só escancara o quanto ser mulher, ser lésbica e existir publicamente ainda é tratado como exceção.
A grande ironia é que essa sociedade, que descarta sistematicamente quem envelhece, está caminhando aceleradamente para se tornar, ela própria, uma sociedade de velhos. A pirâmide etária virou losango, e logo vira funil de ponta-cabeça. O Brasil do futuro é um país de idosos. Só que, curiosamente, seguimos operando como se esse futuro não nos dissesse respeito. Seguimos vendendo a mentira da juventude infinita, da produtividade sem fim, do corpo perfeito que nunca adoece, nunca cansa, nunca envelhece.
O que a Parada fez este ano foi esfregar na cara do país — e da própria comunidade — uma verdade inconveniente: envelhecer não é fracassar. Envelhecer é vencer. É resistir ao sistema, à indústria, ao mercado, ao algoritmo e a toda uma cultura que preferiria que você simplesmente desaparecesse depois dos 50.
A juventude não é uma identidade. Não é um mérito. Não é um status permanente. É só uma fase. E ela passa. O que fica, se a gente tiver sorte, são as histórias, as marcas, as memórias e, principalmente, a potência de continuar existindo — mesmo quando tudo ao redor opera para te transformar em ausência.
E que fique claro: não, eu não faço parte dessa estatística — pelo menos, não ainda. Estou nos meus 20 e poucos, meu colágeno segue em dia, e o algoritmo, por ora, ainda me entrega. Mas é justamente desse lugar que escolho levantar o questionamento. Porque se, pra uma mulher cis, hétero, envelhecer já é quase um ato de resistência, o que sobra pra quem carrega, além da idade, a intersecção de mais uma — ou várias — minorias? Se não há perspectiva de futuro nem para as que habitam o centro da norma, que dirá pra quem existe nas bordas: lésbicas, bissexuais, mulheres trans, corpos dissidentes. A pergunta que fica, incômoda, urgente, inevitável, é simples e brutal: se o futuro é velho — quem, afinal, vai ter permissão para existir nele?